segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

António Lobo Antunes e os Bombeiros Lisbonenses





“Sempre achei que a minha melhor qualidade era a ausência de inveja. Para ser inteiramente honesto confesso que é mentira: invejo-o a si. Invejo-o desde os dezassete anos, quando você entrou, uma noite, no baile dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, onde eu ia, aos sábados, apanhar tampas de donzelas lavadas com sabonetes Ach Brito, perfumadas com Madeiras do Oriente (caíam lascas dos sovacos) e repletas de lantejoulas no cabelo, sentadas ao lado das mães, em geral de luto e com o retrato do falecido ao peito, num coração de esmalte (…).
Você encostou-se em silêncio a uma parede, soberbamente alheio às donzelas que lhe pestanejavam convites, agitadas nas cadeiras como galinhas no choco, e às mães-viúvas prontas a recebê-lo (…) e a tomá-lo por genro (…).
Invejei-lhe o sucesso. Invejei-lhe o pasmo do bombeiro de serviço. Invejei-lhe a poupa, a camisa, a pulseira, o anel, os mocassins, o à-vontade e o desdém. Invejei os cartazes que o mostravam de tronco nu (…).
Foram-me necessários muitos e trabalhosos anos para o esquecer. E julgava-me liberto de sentimentos mesquinhos quando, há meses, o ouvi na televisão desafiar qualquer homem para um concurso de dez modalidades (…).
Revi os Bombeiros Voluntários Lisbonenses, e imensa, azeda, destruidora, a inveja voltou. (…)
Amanhã de manhã, começo a fazer quatro horas por dia de musculação. Talvez seja tarde, mas, pelo menos, à Brandoa hei-de chegar.”

ANTUNES, António Lobo, Crónicas
António Lobo Antunes (Lisboa, 1/9/1942)
Romancista e cronista, médico especializado em Psiquiatria

Sem comentários:

Enviar um comentário